quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Credo Ut Intelligam: a teologia cristã e seus parâmetros

Por Alderi Souza de Matos

Quem considera a história da teologia não pode deixar de impressionar-se. Além de extremamente longa, essa história é complexa e multifacetada, espelhando uma imensa diversidade de épocas, tradições, culturas, interesses e individualidades. Por mais que se deteste essa preocupação, a teologia é uma atividade não só inevitável como também imprescindível para os cristãos. Inevitável porque é próprio do ser humano refletir, questionar, interpretar, firmar posicionamentos. Imprescindível porque resulta da própria natureza da revelação. A fé cristã é algo cujo significado e implicações precisa ser considerado e reapropriado em cada nova geração.

Outra constatação importante é que todo cristão é um teólogo, mesmo sem o saber. A diferença é que alguns refletem sobre a fé de modo simplista, casual e aleatório, ao passo que outros, graças aos seus dotes intelectuais, preparo acadêmico e perspicácia, podem fazê-lo de modo mais rico, profundo e criativo. Como toda e qualquer atividade humana, a teologia padece de certas vicissitudes. Existe boa e má teologia. Por exemplo, houve épocas da história do cristianismo em que se buscou uma justificação teológica para a perseguição de dissidentes, a discriminação racial ou ações opressivas por parte do Estado.

Nos tempos pós-modernos atuais, a teologia tem atingido um alto grau de sofisticação intelectual e filosófica. Ao mesmo tempo, tem se tornado uma atividade fortemente individualista em que os teólogos parecem competir para ver quem será o mais radical, inovador e iconoclasta. Isso tem levado ao esfacelamento da teologia contemporânea, a ponto de, muitas vezes, tornar-se irreconhecível como teologia especificamente cristã. Para que seja considerada cristã, a teologia precisa manter-se dentro de certos parâmetros, ter em mente certos referenciais. Não se trata de impor uma camisa de força à tarefa teológica, mas de reconhecer que existem compromissos a manter.

1. O Deus trino
A centralidade de Deus na teologia parece óbvia, mas isso nem sempre ocorre. Ainda que etimologicamente a palavra “teologia” signifique um estudo ou discurso sobre Deus, existem muitas teologias nas quais o principal ponto de referência não é Deus, e sim outros interesses. Alguns autores têm se referido aos fundamentalistas como os “defensores de Deus”. Na realidade, Deus não necessita de defensores, mas qualquer teologia que pretenda ser cristã precisa ter um conceito elevado e correto de Deus, precisa compreender que o seu compromisso primordial é com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Caso contrário, como falar em teologia?

Nos últimos séculos tem surgido teologias que questionam a personalidade de Deus, sua transcendência ou imanência, sua onipotência, sua cognoscibilidade e até mesmo sua relevância ou necessidade (“teologia da morte de Deus”). Não se trata de reduzir toda a teologia a uma reflexão sobre Deus e nada mais, mas de reconhecer que toda reflexão teológica genuína deve começar com Deus como o fundamento último de toda a realidade e da fé cristã. Isso se faz necessário diante de correntes teológicas atuais, tanto à esquerda quanto à direita, cuja abordagem é inteiramente antropocêntrica, começando com as necessidades e desejos humanos para então elaborar um entendimento de Deus como aquele cuja função principal é satisfazer tais aspirações.

2. A revelação bíblica
O reformador João Calvino opinou que a teologia, para ser legítima, deve ater-se aos limites da revelação. Isso significa que ela não deve dizer mais – e nem menos – do que Deus revelou em sua Palavra. Ela é uma reflexão reverente sobre a revelação e não deve perder-se em especulações. Obviamente esse conceito se torna risível na perspectiva de muitas teologias dos últimos séculos, para as quais a revelação bíblica é apenas uma, e não necessariamente a mais importante, das fontes da teologia. A razão desse desprezo é que o próprio conceito de revelação especial tem sido questionado. Com isso a teologia se torna um esforço filosófico e especulativo que tem pouco contato com as genuínas raízes da fé e da espiritualidade cristã.

Um bom exemplo dessa ênfase foi a teologia deísta do século 18. Por causa do seu interesse exclusivo na religião natural ou racional, os deístas negavam grande parte do arcabouço doutrinário da fé cristã histórica. O cristianismo foi reduzido a um sistema de moralidade no qual não havia lugar para o culto, o testemunho e a vida comunitária. Valorizar a revelação não significa cair no biblicismo daqueles que diziam “a Bíblia, toda a Bíblia e nada senão a Bíblia é a religião dos protestantes”. Significa reconhecer que Deus fala aos seres humanos nas Escrituras como em nenhum outro lugar. Mesmo que se afirme que a revelação suprema de Deus é Jesus Cristo, a importância da Escritura permanece, porque somente por meio dela, e do testemunho do Espírito Santo a ela associado, Cristo pode ser conhecido.

3. A comunidade de fé
Uma das funções da teologia é servir a igreja, não no sentido de ser instrumento dessa ou daquela ideologia, mas com o propósito de animá-la em sua caminhada, despertá-la para dimensões esquecidas da revelação, adverti-la para que seja mais fiel ao evangelho de Cristo. Assim sendo, a teologia deve ser produzida no contexto da koinonia, da vivência comunitária cristã. O verdadeiro teólogo não é aquele se coloca do lado de fora e procura impor os seus conceitos pessoais e subjetivos, mas alguém que faz parte do povo de Deus, caminhando com ele, partilhando de suas lutas e esperanças.

Outro aspecto dessa dimensão coletiva reside no fato de que fazer teologia é também interagir com a igreja do passado, com o rico legado de séculos de reflexão bíblica e teológica. É lamentável quando os teólogos dialogam prioritariamente com pensadores e correntes intelectuais não-cristãos, e até mesmo anticristãos, buscando neles referenciais teóricos e inspiração para as suas reflexões, mas demonstrando limitado interesse pela revelação cristã e pela comunidade de fé. Embora os interesses da teologia não tenham de circunscrever-se exclusivamente ao âmbito da igreja, esse elemento nunca pode ser omitido.

4. O mundo ao redor
Finalmente, assim como acontece com Jesus Cristo e com o evangelho, a teologia deve ser encarnada e contextual, ou seja, comprometida com Deus, com a revelação e com o corpo de Cristo, mas também relevante para a comunidade humana mais ampla. Embora a condição humana seja essencialmente a mesma em todas as épocas, cada geração se defronta com desafios inéditos para a fé cristã. O que a teologia tem a dizer ao indivíduo moderno com suas angústias, perplexidades e dúvidas? O que dizer diante das afirmações cada vez mais ousadas da ciência? Diante das realidades do terrorismo, guerra e criminalidade, das desigualdades e opressões, da crise ecológica e de tantas outras questões da atualidade?

Todavia, a teologia tem de fazer escolhas. Sua relação com o mundo, a sociedade e a cultura precisa ter, ao mesmo tempo, um elemento de simpatia e de distanciamento crítico. Muitos teólogos, na ânsia de tornar a fé cristã palatável ao “homem moderno”, têm feito tamanhas concessões a ponto de descaracterizar por completo o evangelho. A busca de relevância e o desejo nobre de construir pontes não podem desconsiderar o fato de que o escândalo da cruz é inevitável no confronto entre a fé e o presente século. Daí a pertinência da conhecida ironia de H. Richard Niebuhr quanto a certas abordagens teológicas: “Um Deus sem ira levou um homem sem pecado a um reino sem julgamento por meio das ministrações de um Cristo sem uma cruz” (O reino de Deus na América, 1937).

Conclusão
Na metade da Idade Média viveu o grande teólogo Anselmo de Cantuária (1033-1109). No seu trabalho, ele se firmou em dois conceitos que se tornaram célebres na história do pensamento cristão: Credo ut intelligam (“creio para que possa entender”) e Fides quaerens intellectum (“a fé em busca de compreensão”). Com isso, Anselmo quis dizer que a tarefa da teologia é mostrar que crer é também pensar, ou seja, que não há uma dicotomia entre fé e reflexão intelectual. Ao mesmo tempo, ele destacou a prioridade da fé, do compromisso com Deus, no labor teológico. Para que seja genuinamente cristã, a teologia deve estar sempre consciente dos seus referenciais. Dentro dos limites impostos por eles, ainda haverá muito espaço para um pensamento fecundo, criativo e desafiador.

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