quarta-feira, 21 de outubro de 2009

EM BUSCA DE UMA TEOLOGIA DA ESTÉTICA

Por Luiz Sayão


A fé cristã teve uma trajetória traumática com as manifestações artísticas. Desde o início do cristianismo a relação entre fé e arte sempre foi de suspeita. Por que será que isso aconteceu? De onde veio essa ruptura? Tem explicação?

Os judeus e os primeiros cristãos sempre contemplaram as manifestações artísticas dos pagãos e dificilmente dissociavam uma coisa da outra. A arte dos egípcios, babilônios, filisteus, gregos e romanos estava repleta de idolatria e de imoralidade. Não é difícil entender a repulsa de judeus e cristãos a tais manifestações.
Além disso, foi o próprio Deus que proibiu a confecção de imagens de escultura (Êx 20.4-5) como objeto de culto. O mandamento foi levado a sério pelos judeus. Não temos quase nada de esculturas hebraicas dos tempos bíblicos. No cristianismo primitivo a tendência prosseguiu. Todos sabem que a controvérsia das imagens foi um dos principais problemas da história da igreja. Até hoje católicos e protestantes têm linhas demarcadas em torno da questão.

Na área da música, as coisas também foram complicadas. O Novo Testamento fala pouco de música cantada na igreja. A igreja cristã sempre temeu que a música se tornasse um ídolo que prejudicasse a adoração genuína. O canto gregoriano tornou-se um estilo musical que evitava os desvios da alma. O problema persistiu na época da Reforma. O zelo por uma espiritualidade genuína e o medo da idolatria muito limitaram a expressão estética. Instrumentos musicais foram vistos com desconfiança. Os calvinistas mais radicais mostraram essa ruptura. Houve até mesmo uma destruição em massa de órgãos na Escócia. Graças à tradição luterana alemã, a música protestante teve força cultural e depois foi exportada para outros ambientes. O fato é que essa tradição de reticência com a arte teve efeito no evangelicalismo anglo-saxão e chegou também ao Brasil.

Em terras brasileiras a arte entre evangélicos teve outro agravante. Como era proibido construir templos no início da história protestante, nossos templos pareciam “caixotes da fé”, com pouquíssima referência estética. Além disso, por sua identidade anti-católica, símbolos como a cruz entre outros também foram abolidos. Em resumo, nossa herança estética é mínima. Por que tão grande divórcio?

Antes de iniciarmos qualquer preteritoclastia, é preciso observar que o problema da ruptura com a arte surgiu da leitura da própria Bíblia. Quando lemos a gênese da arte nas Escrituras, ficamos assustados. Tudo começa com a família de Caim. A arte começa num ambiente anti-Deus, com características más como independência de Deus, imoralidade e violência. O toque final da estética de Caim aparece na figura da Cidade, resumo daquela civilização anti-Deus:

19 Lameque tomou duas mulheres: uma chamava-se Ada e a outra, Zilá. 20 Ada deu à luz Jabal, que foi o pai daqueles que moram em tendas e criam rebanhos. 21 O nome do irmão dele era Jubal, que foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. 22 Zilá também deu à luz um filho, Tubalcaim, que fabricava todo tipo de ferramentas de bronze e de ferro. Tubalcaim teve uma irmã chamada Naamá.23 Disse Lameque às suas mulheres: “Ada e Zilá, ouçam-me; mulheres de Lameque, escutem minhas palavras: Eu matei um homem porque me feriu, e um menino, porque me machucou. (Gn 4.19-23 – NVI)

Mas a pergunta que devemos fazer é: será que o início da estética compromete plenamente sua manifestação? O problema está na arte ou no coração do homem? Deus criou tudo bom e bonito (cf. o hebraico: Gn 1.31). Na verdade, Deus é o Senhor de toda arte! Ele é o Deus da estética. Por isso, vejamos outros enfoques estéticos nas Escrituras. Em Êxodo 31.1-7 (NVI), há um texto bíblico surpreendente:

1 Disse então o Senhor a Moisés: 2 “Eu escolhi Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, 3e o enchi do Espírito de Deus, dando-lhe destreza, habilidade e plena capacidade artística 4 para desenhar e executar trabalhos em ouro, prata e bronze, 5 para talhar e esculpir pedras, para entalhar madeira e executar todo tipo de obra artesanal. 6 Além disso, designei Aoliabe, filho de Aisamaque, da tribo de Dã, para auxiliá-lo. Também capacitei todos os artesãos para que executem tudo o que lhe ordenei: 7 a Tenda do Encontro, a arca da aliança e a tampa que está sobre ela, e todos os outros utensílios da tenda...

Como pode o Deus que proibiu “fazer imagens de escultura” ordenar a confecção artística do tabernáculo (Êxodo 25 a 40), o que incluía a imagem de dois querubins! E o texto ainda diz que a capacidade de criar e expressar o Belo veio do Espírito de Deus! Começa aqui uma história de redenção da arte. Deus condenava a idolatria, mas nunca foi seu objetivo destruir a própria arte.
Prosseguindo pela Bíblia, vamos encontrar arquitetura e estética espacial no templo de Salomão, música muito elaborada nos Salmos e em outras partes, muita poesia cuidadosamente trabalhada em grande parte de toda a Bíblia. Há inclusive uma espécie de encenação dramática nos profetas (Ezequiel). Deus é o Senhor de toda arte!

Mesmo que a motivação de muitos cristãos tenha sido sincera, muito da teologia da estética presente na Bíblia não foi percebido por eles. Por isso, herdamos um cristianismo de expressão tão sisuda, e às vezes melancólica, que tem dificuldades de dialogar com a estética e com a cultura nacional contemporânea.

A questão é muito séria porque a arte tornou-se fundamental para a sociedade contemporânea. É o principal meio de veiculação de conteúdo. O pensador Francis Schaeffer criticou a atitude de afastar-se da arte comum do evangelicalismo americano no início do século 20. Isso foi mortal para a igreja, pois a música e as artes cênicas tornaram-se monopólio do pensamento secular. O conservadorismo entregou as novas formas de expressão ao mundo não cristão, facilitando a formação de uma geração secular e pagã! Por isso, a igreja precisa redescobrir o valor e o poder da arte. Mesmo que seu início na história bíblica seja maculado e que seu transcurso histórico esteja muito marcado pelo pecado, na Bíblia Deus redime a arte, para a sua honra e sua glória.
Hoje, é possível vermos criações artísticas que surgiram longe dos arraiais da fé, serem usados por Deus para o benefício do reino. O que era para o mal, tornou-se bem! Deus dá um nó no Mal!
A vitória de Deus é extraordinária. Vale observar que o Apocalipse termina a Bíblia cheio de arte e cheio de muita música. Até a Cidade, símbolo da arte e do progresso do mal, é transformada em bênção (Ap 21.1-4). Que Deus use cada Bezalel e Aoliabe de hoje. Nunca a relevância do artista cristão foi tão importante na história!

Fonte: Blog Fiel

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