sexta-feira, 26 de junho de 2009

O DISCURSO DE SARNEY


Por Nivaldo Cordeiro

Eu sempre soube que Vossa Excelência, senador José Sarney, nunca foi um estadista, no sentido dicionarizado de ser uma pessoa que tem liderança política e sabedoria para se portar acima dos interesses gremiais menores e em prol dos interesses gerais. Sempre me pareceu que Vossa Excelência pautou sua vida política pela mesquinharia, pelo compadrio, pelo usufruto do poder de Estado para fazer prevalecer seus instintos de clã naquilo que tem de mais retrógrado. Tem me parecido que a ética dos cupinchas é a que preside as suas relações de poder, desde a origem.


A crise que eclodiu nos últimos dias, em torno dos atos ditos secretos do Senado (uma vergonha inominável, mais do que uma afronta à Constituição), é a expressão mais degradante das práticas nepotistas de que se tem notícia. Esses atos colocaram Vossa Excelência sob as luzes da ribalta e atraíram a ira de toda a Nação brasileira. Noticiou-se que irmão, neto, sobrinho e sabe-se lá mais quantos familiares seus foram objeto dessa forma suja de ocultação do ato administrativo ordinário. Houve uma locupletação espantosa de sua parentela com as verbas públicas.


O que mais incomodou no seu discurso é o pseudo tom majestático que Vossa Excelência lhe deu, como se o seu passado servisse de biombo para esconder as "pequenas" estripulias nepotistas que foram noticiadas, como se, associadas a elas, não estivesse a falta gravíssima de não se dar a devida publicidade legal aos atos de gestão. Não, senador José Ribamar Sarney, nem o seu passado é grandioso e nem as atuais denúncias são miudezas. Elas testemunham, sim, a mesquinharia de quem se julga dono do poder e acima das leis, como um Faraó renascido no Maranhão. Nem ditadores conseguiram essa proeza de ficarem acima das leis, quanto mais nobres senadores, símbolos da República e das práticas republicanas, que têm que dar satisfação cotidiana dos seus atos. Graças a Deus ainda vivemos dentro de uma sociedade aberta e que tem uma imprensa livre, apesar de tudo. Nada pode ter ocultação permanente, esse é o testemunho que nos ficou dos grandes escândalos recentes do governo Lula, como o do Mensalão, de triste memória.


Enumerar sua longa carreira política como álibi no seu discurso só demonstrou a má fé que o move. Qualquer um, se somar seus atos bons e esconder seus atos indignos, poderá fazer crer aos interlocutores que é um portador de santidade, uma evidente falsificação. O fato é que sua vida política, para além dos cargos eletivos ocupados e das honrarias angariadas por força desses cargos, ao longo de sua vida pública, aí incluindo a eleição para a Academia Brasileira de Letras, está longe de ser virtuosa. Toda gente sabe de sua responsabilidade maior sobre a origem da hiperinflação que legou ao término de seu mandato na Presidência da República, testemunha indelével da má gestão administrativa oriunda de sua ética de cupinchas . Eu próprio pude testemunhar a febre de nomeações imorais de levas e levas de cabos eleitorais, para cargos públicos estáveis, durante o seu governo, sob a vigência da lei anterior à Constituição atual, legalidade que jamais serviu para esconder a imoralidade do que foi feito. Os últimos dias antes de vigir a nova Constituição foram pavorosos em matéria dessas nomeações imorais, devidamente assinadas nos decretos pelo presidente em exercício, que era Vossa Excelência. Basta consultar o Diário Oficial da época, pois então não se usava a prática de atos secretos.


Nunca é demais recordar que seu Estado de origem, o Maranhão, continua a ser uma das unidades federativas mais pobres e subdesenvolvidas do Brasil, em grande parte por causa da incúria dos governantes que se sucederam no poder ao longo das últimas décadas, basicamente Vossa Excelência em pessoa, seus familiares e seus compadres políticos. Se há um atestado de incompetência de um governante, temos o mesmo dado pelas agruras que até hoje pesam sobre os compatriotas maranhenses, mais das vezes objeto de ironia precisamente pela proeminência nos cargos maiores da Nação adquirida por Vossa Excelência, representando aquela boa gente.


Que retórica mais pobre essa de tentar colocar como escudo protetor o espírito corporativo do Senado, como podemos ler no trecho: "Não é a primeira vez que digo isso aqui, vou repeti-la: a instituição é maior do que todos nós somados". Claro que a Instituição é maior do que cada um dos seus membros isolados, claro que o Senado é uma das faces do povo brasileiro. Pura redundância, um truísmo. Mas não se pode dizer que as travessuras nepotistas secretas denunciadas tornem um dos pares diferenciados dos demais em sentido positivo, mas o torna certamente diferenciado em sentido negativo, motivo de execração pública. É possível que a gravidade do escândalo leve eventualmente à abertura de processo de cassação dos responsáveis, se o Senado reagir à altura do que esperam muitos dos brasileiros, entre os quais me incluo.


"Não seria agora, na minha idade, que iria praticar qualquer ato menor que nunca pratiquei na minha vida", declarou Vossa Excelência. Precisamente o contrário, Senador. Em qualquer idade que Vossa Excelência tenha transitado no poder, mormente agora, o que se ouve é que a prática nepotista sempre foi usada, alargada para atender toda sorte de compadrio político. Os documentos vindos a públicos atestam isso à sobeja.


Querer diluir a presente crise no contexto de uma suposta crise global da instituição dos parlamentos pelo mundo é recurso sofistico atroz. É como se não existisse fato causador do escândalo que tomou conta dos meios de comunicação, como se o escândalo não tivesse motivação concreta, sabida e reconhecida. Todos os nomeados têm o seu sobrenome ou lhe são aparentados. Mesmo assim Vossa Excelência não teve pejo de dizer: "Então, é com essa responsabilidade que nunca tive meu nome associado a qualquer das coisas que são faladas aqui dentro do Congresso Nacional, ao longo do tempo, porque isso é uma crise mundial. O que se fala aqui no Brasil sobre o Congresso fala-se na Espanha, fala-se na Inglaterra, fala-se na Argentina, fala-se em todos os lugares". Ora, se seu irmão, seu neto, sua sobrinha e sabe-se lá mais quem são denunciados pela imprensa, então é o seu nome, sim, Excelência, que está conspurcado pelo nepotismo. Eles, os seus parentes diretos, estão lá precisamente porque Vossa Excelência é senador da República e no memento é o presidente do Senado Federal.
Nunca estiveram lá por méritos pessoais. Seus parentes diretos não apenas adquiriram ricos proventos em cargos públicos sob a sua jurisdição, e até mesmo um garoto que pode se dizer ainda imberbe e não formado, seu neto, lá foi nomeado. Todos usufruem ou usufruíram das sinecuras e foram para elas nomeados em atos ditos secretos exclusivamente porque carregam o seu nome, Vossa Excelência não tem responsabilidade sobre isso? Mesmo sendo Vossa Excelência o presidente em exercício da Casa? Ao contrário, tem toda a responsabilidade, sim, e é dela que lhe cobra a Nação.


Não há grandeza alguma no seu discurso, mas uma majestade postiça e inconveniente que agrediu aos que o ouviram e agride àqueles que lêem a peça. Pura retórica vazia. Uma palavra fantástica que nunca terá o poder de fantasiar o mal feito. Seu discurso bem poderia ter sido mais singelo e curto e substantivo, que dissesse o que a Nação quer ouvir, mas seria demais esperar tal grandeza. Eu nunca esperei.

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