Quando se visita o Museu Britânico, de Londres, ao
passamos pelos seus históricos salões, com suas preciosas obras milenares,
destaca-se aos olhos do visitante atento uma obra peculiar.
Um dos exemplares do Novo Testamento, publicado em
1681, por João Ferreira de Almeida, está ali exposto. Nota-se nesse exemplar
uma peculiaridade notável. Impresso segundo as técnicas da época e publicado na
Holanda, em Amsterdã, por ordem da Companhia Holandesa das Índias Orientais,
neste manuscrito podem ser vistas algumas correções feitas a mão, demonstrando
o cuidado e a urgência do autor em que a preciosa Palavra de Deus alcançasse os
povos de língua portuguesa, com os quais trabalhava na Batávia, atualmente
Jacarta, na ilha de Java, na Indonésia.
Embora o trabalho de revisão e correção daquela
primeira edição do Novo Testamento não tenha sido visto pelo autor, pois
demorou dez longos anos, a segunda versão foi impressa na própria Batávia e
dali distribuída para os povos de língua portuguesa daquela região antes
colônias de Portugal.
Enquanto aguardava essa revisão, Almeida não perdeu
tempo e iniciou o trabalho de tradução do Antigo Testamento. Em 1683 ele já
completara a tradução do Pentateuco.
Mas, com a saúde abalada, desde 1670, seu ritmo de
trabalho era limitado. Ao diminuir suas atividades pastorais, ele dedicou a
maior parte do tempo ao seu trabalho de tradução.
Embora abnegado e com um objetivo claro a alcançar em
sua vida, Almeida faleceu em 6 de agosto de 1691, na Batávia, no Oriente, sem
ver a sua obra completa. Enquanto tinha forças continuou trabalhando e sua
tradução chegou, conforme alguns historiadores, ao capítulo 6 de Jeremias, e
segundo outros historiadores, ao capítulo 48 de Ezequiel. Seu amigo e
companheiro de ministério, o pastor holandês, Jacobus op den Akker, completou o
seu trabalho, concluindo a tradução do Antigo Testamento.
O trabalho de tradução de João Ferreira de Almeida
alcançava assim toda a Bíblia Sagrada e desde o início de suas publicações foi
uma obra muito apreciada pelos conhecedores da língua portuguesa.
João Ferreira de Almeida foi um instrumento precioso
nas poderosas mãos de Deus, para dar aos povos de fala portuguesa a tradução
mais difundida e aceita entre esses povos, antes colônias de Portugal.
Quando a Igreja Católica Romana ainda lutava com a
divulgação das Escrituras Sagradas, a tradução de Almeida surgiu como uma luz a
brilhar na escuridão, em meio àqueles territórios, que, já libertos de
Portugal, ainda se mantiveram por mais duzentos anos sob a influência da
cultura e da língua portuguesa.
1. A infância e a
conversão
Nascido em 1628, Almeida era natural
de Torre de Tavares, Conselho de Mangualde; filho de pais católicos; bem cedo
mudou-se para a Holanda, passando a residir com um tio. Ali aprendeu o latim e
iniciou-se nos estudos das normas da igreja.Aos 14 anos, em 1642, aceitou a fé
evangélica, na Igreja Reformada Holandesa, impressionado pela leitura de um folheto
em espanhol, "Diferencias de la Cristandad", que tratava das
diferenças entre as diversas correntes da crença cristã.
2. Um adolescente
talentoso.
Já em 1644, aos 16 anos, Almeida
inicia uma tradução do espanhol para o português, dos Evangelhos e dos Atos dos
Apóstolos, os quais, copiados a mão, foram rapidamente espalhados pelas
diversas comunidades dominadas pelos portugueses. Para este grandioso trabalho,
Almeida também usava como fontes as versões latina, de Beza, francesa e
italiana, todas elas traduzidas diretamente do grego e do hebraico. No ano de
1645, a tradução de todo Novo Testamento foi concluída; mas, como já foi dito,
somente seria editada em 1681, em Amsterdã.
3. Um jovem operoso
Em 1648, relata J. L. Swellengrebel, um holandês que
teve acesso às Atas do Presbitério da Igreja Reformada da Batávia e às Atas da
Companhia Holandesa das Índias Orientais, Almeida já estava atuando como
capelão visitante de doentes, em Malaca, Malásia, "percorrendo diariamente
os hospitais e casas de doentes, animando e consolando a todos com as suas
orações e exortações".
Em janeiro de 1649, Almeida é escolhido como diácono e
membro do presbitério. Nessa função tinha a responsabilidade de administrar o
fundo social, que prestava assistência aos pobres.Durante os dois anos em que
desenvolveu essa função, continuou a sua obra de tradução e, após a tradução do
Novo Testamento, dedicou-se e traduziu o Catecismo de Heidelberg e o Livro da
Liturgia da Igreja Reformada. As primeiras edições dessas obras foram publicadas
em 1656 e posteriormente em 1673.
Em março de 1651, foi para a Batávia, para a cidade de
Djacarta, ainda como capelão visitante de doentes, mas simultaneamente,
desenvolvia seus estudos de Teologia e revisava o Novo Testamento.Em 17 de março
de 1651, foi examinado publicamente, sendo considerado candidato a ministro.
Depois de ser examinado, pregou com eloqüência sobre Romanos 10.4. Desenvolve
também um ministério importantíssimo entre os pastores holandeses
ensinando-lhes o português, uma vez que ministravam nas igrejas portuguesas das
Índias Orientais Neerlandesas.
4. Um ministro, perseguido pela
Inquisição e salvo de um elefante
Em setembro de 1655, faz o exame final, quando prega
sobre Tito 2.11-12, mas só recebe a sua confirmação em 22 de agosto de 1656.
Neste mesmo ano, quase um mês depois, em 18 de setembro, é enviado como
ministro para o Ceilão, hoje Sri Lanka.Luta Contra Os Cristãos Em 1657, João
Ferreira de Almeida encontra-se em Galle, no sul do Ceilão, atuando como
ministro. Durante o seu ministério em Galle, Almeida assumiu uma posição tão
firme contra o que ele chamava de "superstições papistas", que o
governo local resolveu apresentar uma queixa a seu respeito ao governo da
Batávia.Durante a sua estadia em Galle é que, provavelmente, conheceu e se
casou com Lucretia Valcoa e Lemmes, ou Lucrecia de Lamos, jovem também vinda do
catolicismo romano.
O casal completou-se como família tendo dois filhos,
um menino e uma menina, dos quais os historiadores não comentam mais nada. No decorrer
da viagem de Galle para Colombo, Almeida e sua esposa foram milagrosamente
salvos da investida de um elefante.
A partir de 1658, e durante três anos, Almeida
desenvolveu o seu ministério na cidade de Colombo e ali de novo enfrenta
problemas com o governo, o qual tentou, sem sucesso, impedi-lo de pregar em
português. O motivo dessa medida, estava provavelmente relacionado com as
firmes e fortes idéias anti-católicas do jovem pastor.Em 1661, Almeida vai para
Tutecornin, no sul da Índia, onde foi pastor durante um ano e onde também não
teve dias tranqüilos. Tribos da região negaram-se a ser batizadas ou ter os
seus casamentos abençoados por ele, pelo fato da Inquisição ter ordenado que um
retrato de Almeida fosse queimado numa praça pública em Goa.
5. Um ministro com maturidade e
personalidade
Em 1662, Almeida está ministrando em Quilon,
regressando para a Batávia em março de 1663, onde fica à frente da igreja
portuguesa até dois anos antes de sua morte.Como dirigente desta igreja, em
1664, demonstra muita personalidade, expondo suas própria idéias, mas com
maturidade aceita as decisões superiores. Neste ano tenta persuadir o
Presbitério para que sua congregação tenha a sua própria celebração da Ceia;
propõe também que os pobres que recebem auxílio do fundo social da igreja
freqüentem as aulas de catequese; e elabora um folheto com orações para serem
usadas na igrejas portuguesas.
Em 1666, propõe a nomeaçãode anciãos e diáconos, como
auxiliares do ministério, mas sua proposta é rejeitada, vindo ser aprovada
somente quatro anos depois. No ano de 1670, recebe a Carta Apologética,
após cerca de seis anos de diálogo por correspondência, a qual assinala a
ruptura definitiva entre ele e o padre e teólogo Jerônimo de Siqueira, a quem
tentou evangelizar. Depois desta carta, não só Almeida voltou a defender-se,
como sofreu também os ataques do jesuíta João Baptista Maldonado, num Diálogo
Rústico, terminando desse modo a polêmica.
Em 1676, após ter dedicado vários anos ao aprendizado
do grego e do hebraico e se aperfeiçoado no holandês, Almeida comunicou ao
presbitério que a tradução do Novo Testamento estava pronta. A partir daí
começou a batalhar para ver o seu texto publicado. Para ter o aval do
presbitério e o consentimento do Governo da Batávia e da Companhia Holandesa
das Índias Orientais, o seu texto deveria passar pelo crivo dos revisores
indicados pelo presbitério.
Escolhidos os revisores, o trabalho começou, mas foi
evoluindo lentamente.Em 1677, um novo ministro é chamado do Ceilão, para a Batávia,
para caminhar ao lado de Almeida e futuramente substituí-lo. Seu nome é Jacobus
op den Akker.
Numa reunião do Presbitério, em 1678, Almeida
"declara-se solenemente contra os rumores que então corriam sobre o seu
desejo de voltar ao catolicismo. Como prova da sua posição, demonstrou que o
folheto "Diferencias de la Cristandad", que fora instrumento de sua
conversão, tinha sido traduzido, em 1650, para o português e alguns anos mais
tarde para o holandês.
6. Um ministro comprometido com a
Palavra de Deus.
Em 1680, quatro anos depois do início da revisão,
irritado com a morosidade do trabalho, envia o seu manuscrito, para ser
publicado na Holanda por conta própria. O seu desejo é que a Palavra de Deus
seja conhecida pelo povo de língua portuguesa. Mas, o presbitério percebe a
situação e consegue sustar o processo, interrompendo a impressão.Depois de
alguns meses, gastos entre discussões e brigas, quando Almeida já parecia ter
desistido da publicação, cartas vindas da Holanda o informaram que o texto fora
revisado e que estava sendo impresso.
Em 1681, a primeira edição do Novo Testamento de
Almeida finalmente saiu da gráfica e no ano seguinte, em 1682, chegou à
Batávia. Quando começou a ser manuseada foram percebidos vários erros de
tradução e revisão. Tal fato foi comunicado à Holanda e todos os exemplares que
ainda não haviam saído de lá foram destruídos, por ordem da Companhia Holandesa
das Índias Orientais.
As autoridades holandesas determinaram também que se
fizesse o mesmo com os exemplares que já estavam na Batávia. Mas, ao mesmo
tempo, providenciaram para que se começasse, o mais rapidamente possível, uma
nova e cuidadosa revisão do texto.Apesar das ordens recebidas da Holanda, nem
todos os exemplares foram destruídos, e correções foram feitas a mão com o
objetivo de que cada comunidade pudesse fazer uso desse material. Um desses
exemplares foi preservado e se encontra no Museu Britânico em Londres.
7. O final de uma vida dedicada.
Devido à sua saúde abalada, foi permitido a João
Ferreira de Almeida, que dedicasse menos horas ao seu trabalho na igreja. Com
isso entregou-se ainda mais à tradução do Antigo Testamento, trabalho que já
tinha iniciado anos antes. Um ano depois, em 1683, já havia traduzido o
Pentateuco.Em 1689, Almeida é considerado "pastor emérito" e também
neste ano, em 16 de setembro ele pede a sua jubilação, "em virtude da
velhice e fraqueza".As últimas atas das reuniões do presbitério que se
referem à sua presença datam de agosto de 1691.
Na ata da reunião do dia 20 de agosto daquele ano
ainda há menção do seu nome, mas ao que parece, ele já não estava mais
presente. João Ferreira de Almeida faleceu em 6 de agosto desse ano, aos 63
anos, deixando a esposa e um casal de filhos.O término de sua obra, como
mencionado antes, deu-se através do seu colega de ministério, o pastor Jacobus
op den Akker.
Convém lembrar, como vemos em sua história, relatada
no livro Deus, o homem e a Bíblia, que Almeida "lutou durante toda a sua
vida para manter as comunidades evangélicas portuguesas nos seus próprios
lugares", enquanto os holandeses iam ocupando os lugares do império
português nas Índias. Almeida se esforçou continuamente para que essas
comunidades tivessem outros livros na língua portuguesa. Numerosas traduções
foram feitas por ele para o português, porém tais trabalhos não chegaram a ser
publicados. Outros livretos, entretanto, foram impressos na Holanda e na
Batávia.
Quando completou a tradução do Novo
Testamento, Almeida foi recompensado pelo presbitério com a importância de 30
réis, quantia esta aumentada, pelo Governo da Companhia Holandesa das Índias
Orientais em mais 50 réis.
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