A Igreja é o que de mais importante
existe no mundo. Criada pela vontade de Cristo, ela
é a agência da salvação, ensaio e vanguarda da nova humanidade. Deus havia
chamado Israel (obediente “versus” desobediente), e no passado nos falou pelos
profetas, guardiões da lei.
A função e o “status” de Israel -- a antiga aliança --
cessaram quando o véu do templo se rasgou. Hoje o judaísmo e o islamismo são
apenas religiões semíticas monoteístas. A Igreja é o novo Israel, a nova
aliança, e, como nos ensina Pedro, herdeira dos títulos e atributos do primeiro
Israel: geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de Deus. Entre o
antigo e o atual Estado secular de Israel (formado por 90% de ateus e
agnósticos) só há em comum a geografia e as mirabolantes teorias de alguns
protestantes. Os judeus (e todos os povos) devem ser enxertados no novo povo,
porque não há salvação em nenhum outro nome senão o de Jesus.
A crise da Igreja é resultado da sua baixa autoestima,
da falta de autocompreensão e conhecimento não somente sobre sua missão, mas
também sobre sua natureza e organização -- uma crise de identidade em razão de
uma ruptura com sua história, suas raízes. Como povo-instituição de Deus, a
Igreja é mais importante do que a família biológica ou adotiva, do que o mundo
do trabalho e do lazer, do que o Estado ou qualquer expressão da sociedade
civil. Ela é portadora única do sentido para as demais coisas -- o evangelho e
o poder do Espírito Santo -- e é nela onde se convive não somente para o tempo,
mas para a eternidade.
A Igreja não é apenas suas expressões localizadas: as
comunidades locais, as tabas religiosas com seus caciques ou as casas de shows
para expressão das fogueiras da vaidade. A igreja vive hoje em pecado porque
desobedece aos dois princípios basilares a ela destinados pelo seu fundador e
Senhor: a unidade e a verdade. O cisma (divisão do corpo) deixou de ser
considerado um grave pecado pelo desordenado denominacionalismo; a heresia
deixou de ser considerado um grave pecado pela crescente e ilimitada
“diversidade” e “inclusividade”. Os cismas são heresias, e as heresias são
cismas. Essa tragédia se transformou em rotina ante a indiferença de todos.
“Denominação” é uma palavra que não se encontra nas
Sagradas Escrituras nem na obra de nenhum autor relevante da história do
pensamento cristão antes do século 18. Não é um termo teológico, eclesiológico,
mas apenas sociológico, administrativo, jurídico, humano, corrente nos últimos
duzentos anos a partir da realidade da “livre empresa” e do “‘self-service’
religioso” norte-americano. Quando a Igreja una, santa, católica, apostólica e
reformada dá lugar a uma miríade de “denominações” ou “ministérios”, o
evangelho é parcializado, a missão é mutilada e vivemos na carne, por mais
piedoso e espiritualizado que seja o nosso discurso. Afirmar que “Deus me
mandou criar um novo ministério” é uma blasfêmia.
A Reforma Protestante foi um dos capítulos mais
importantes da história da Igreja, mas o seu desdobramento em correntes
extremadas fez com que o bebê fosse jogado fora junto com a água do banho. Ela
preocupou-se com a autoridade (das Escrituras) e com a salvação (pela graça
mediante a fé em Jesus) e se descuidou da eclesiologia, do estudo da própria
Igreja. A instituição que deveria garantir a preservação dessas verdades logo
foi atropelada pelo racionalismo liberal ou pelo literalismo fundamentalista. O
livre exame, de livre acesso e investigação, deu lugar à livre conclusão. Ao
contrário da criação, a Igreja se tornou sem forma e vazia. A releitura das Escrituras
pela burguesia europeia, 1600 anos depois, fez os congregacionais tomarem o
embrião e os presbiterianos tomarem o feto como se já fosse o ser nascido
(institucionalizado) -- fato que a história atesta ter acontecido (muito cedo)
somente com a consolidação do episcopado. Por sua vez, a pretensão da Igreja de
Roma (e de alguns ramos da ortodoxia oriental) de ser “a” Igreja, em uma visão
monocêntrica da história, não faz justiça à verdade policêntrica das sés e dos
patriarcados deixados pelos apóstolos em diversas regiões. Foi no Oriente que
viveu a maioria dos Pais da Igreja e onde aconteceram todos os Concílios da
Igreja indivisa (responsáveis pelo consenso dos fiéis); ainda assim, 1.200 anos
de história da Igreja no Oriente (períodos bizantino, pré-calcedônio,
pré-efesiano ou uniata) representam apenas algumas notas de rodapé ou algumas
linhas nas obras dos historiadores católicos romanos ou protestantes
(“anabatistizados”). Ficamos vulneráveis com essa lacuna, em uma época de
desprezo pelo passado e de arrogância individualista e imediatista.
A universalidade da Igreja, com a multiforme
manifestação da graça de Deus em todo o mundo, é mutilada pela hipervalorização
(quase exclusiva) do que nos vem do império do momento. Como foi mesmo a
definição do cânon bíblico, das doutrinas dos credos, dos sacramentos e do
governo episcopal?
• Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política -- teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo -- desafios a uma fé engajada.www.dar.org.br
Fonte: Revista Ultimato
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